mardi 3 août 2010

A Rehabilitação da Ngonguenha


Ngonguenha: mistura de farinha musseque, açucar e água, que constitui o "lanche do pobre" em Angola.

Eu, como muitos angolanos, vivi partes da minha vida no país, (maiores) partes fora dele. E o que ao longo dos anos me "manteve" angolano, foram pequenos detalhes que para outros são insignificantes, mas não para nós, da banda. Sons, sabores, cores, imagens, odores capazes de nos transportar de volta a um sítio não geográfico, um sítio que nos é muito íntimo, e que só partilhamos com quem nos pode compreender nesse particular. A ngonguenha é um desses sabores. Todo o tempo passado fora, a minha Mãe manteve o laço alimentar com a terra, e não era raro que voltasse da escola em França, e preparasse uma caneca da famosa mistura. Devo admitir que prefiro kifufutila, mistura mais elaborada e trabalhosa (mistura de farinha, açucar e ginguba torrada, mas tudo transformado num finissimo pó, tradicionalmente batido com o pilão, mais modernamente adaptado com a máquina de moer 1-2-3). Mas pronto, dá mais trabalho, era um miminho q a kota nos fazia de quando em vez e que desaparecia em instantes logo que confeccionado...

Ao longo dos meus anos de vivência fora, tive e tenho a oportunidade de constatar que muitos angolanos da minha geração estavam a ter a mesma experiência que eu. Alguns d'entre eles restituiram esta experiência das formas mais variadas: por escrito, como o estou a fazer aqui, mas mais frequentemente através da música. Já não da forma saudosista como o pôde fazer um Teta Lando ou um Bonga em tempos idos, num contexto diferente; mas numa óptica de estabelecer um diálogo entre as diferentes gerações, de repensar a nossa pertença a este país, a este continente que nos deu à luz. Um grande sentimento de pan-africanismo cresceu naturalmente dentro de muitos, que, sem rejeitar a cultura do país que nos acolheu, compreendemos ainda melhor a importância de cultivarmos, incentivarmos, difundirmos e até rehabilitarmos a NOSSA própria cultura. E ao contacto da pop internacional, do hip hop, da house, do rock, foram nascendo híbridos inclassificáveis de músicos angolanos, que têm como elo comum a sua angolanidade. Já falei aqui do colectivo BirraKru, acho que não preciso de falar dos Buraka Som Sistema, o Simmons Massini dispensa apresentação... Mas vou falar do Conjunto Ngonguenha.

Descoberta tardia por minha parte, reconheço, este grupo formado por 4 jovens angolanos da minha geração (Ikonoklasta, Conductor, Keita Mayanda e Grande L), crescidos entre Luanda e Lisboa, tem uma sonoridade única, uma escolha de temas e de formas de abordar os mesmos bastante singulares também. Desde a angolanidade ao conflito de gerações, à hipocrisia reinante em Angola no respeitante aos problemas sociais ou às memórias duma infância angolana bem mais sã do que a que estão a viver as gerações actuais... A nostalgia de tempos idos está presente até na capa do álbum, referência imperdível para quem estudou em Angola nos anos 80-90... Tudo isto com um sentido de humor, um vocabulário, um sotaque, referências culturais e uma atitude típicamente angolanos, o que faz com que a adesão seja quase imediata por parte do público mangope. E como de hábito, a contagião rápidamente se estende aos outros lusófonos. A mistura de ritmos hip hop-afro faz da música deles menos inacessível aos "kotas" do que beats 100% hip hop, o que a meu ver é uma boa maneira de difundir a mensagem do grupo de maneira vertical.

Em suma, o Conjunto Ngonguenha é um grupo inovador e tradicionalista ao mesmo tempo, virados para o futuro com um forte sentido do passado e das raízes. O conjunto é um estado de espírito, é redescobrir algo que afinal damos conta que sempre conhecemos, é ter um olhar de criança sobre assuntos de mais velho, é ver Luanda de dentro e de fora, é sentir-se parte de algo de bem maior que nós, e de que nos orgulhamos todos os dias...

Então, aqui vai o meu agradecimento ao Conjunto por fazer passar a Ngonguenha da caneca opaca ao copo de vidro transparente, dando-lhe visibilidade, rehabilitando a sua dignidade como mata fome que foi e será para muita gente, quer física como espiritualmente...